Papa Léguas

"Tudo o que se refere ao homem é dotado de contingência"... Vidal de La Blache (geógrafo)

18.9.04

deves ter razão

Deves ter razão
certamente a História não demorará a pôr-te os cornos
um corno vermelho e outro corno negro
grande e delirante cornudo
meninotauro bufando
e investindo à altura do sexo
Sou pela razão ardente dos teus cornos!
Pisaste bem o rabo de deus
mordeste bem o pescoço do diálogo
enfiaste admiravelmente bem
primeiro um corno depois o outro
no Cu Pró Ar da política
que era o que ela estava a pedir
Como detonador e mais nada já sabes
«porque ninguém representa ninguém»
e «a Poesia deve ser feita por todos»
Dada cá o teu corno vermelho
Dada cá o teu corno negro
quero acariciá-los quero vê-los deitar fumo
fumo negro e vermelho
antes do incêndio
onde eles os teus cornos arderão definitivamente
Saúda-te sussurrealisticamente
um homem quase sem esperança de cornos portugueses
não sei se compreendes
Outros antes de ti
mas da mesma família colérica
já o tinham dito:
o sono do materialismo dialéctico engendra monstros
donde essa monstruação sagrada
que se farta de sujar lençóis
fizeste bem em pegá-los pelos cornos
e ires estendê-los na torre Eiffel
Ceux qui tricolorent (Pré Vert)
vão agora vomitar (Misère)
Viva Dany!
Corno-Satã
Marrada na porta do Amanhã!
Cancan cantáridas
nos testículos operários!
Pan Panfleto metido nos ovários!
Puseste de fora as tripas da sociedade capitalista
tiraste a tampa do caldeirão da democracia
mas com o cuidado de uma mão no nariz
e a outra eriçada de flores
tudo isto com a naturalidade da cólera
tu que inventaste
fazendo o pino sobre a pele esticada do tambor de Paris
o Livro das grandes Excitações
Pseudónimo dos desejos recalcados
analfabeto do abecedário revolucionário
que assinaste de corno
o abaixo-assinado pela Revolução
Viva!
Lobisomem (Pravda) que trincaste
pela primeira vez neste século
o clítoris de Paris
e provaste
que a linha do horizonte do futuro
passa pelo umbigo
e a Freud Karl Marx Fourier e Bakunine
chamaste um FIGO!
Viva!
Quando todos julgavam que desta vez era verdade
o bandulho de Breton principiava a apodrecer
e os martelos da arte da democracia e o mais
começavam a pregar sorrateiramente
os pregos da última cena da Viúva Alegre
eis que o bandulho como um tremor de terra
arreganha os dentes
Tu Dany que sempre usaste o barrete frígio como preservativo
tu sorriste à dentuça arreganhada
e com teu dedo de bronze escreveste nas paredes
frases inventadas
por exemplo: o poeta devorará o seu poema ou não
- o poeta devorará o poema para haver Revolução
o poema devorará o poeta para não
Fique entendido que te exalto apenas para que ardas
para ao menos sentir nas narinas
o doce novo cheiro do enxofre
que anuncia a Aurora Boreal
e a pólvora no Fígado
Cornúpeto Ímpeto SInal
Neste momento és apenas um pretexto
para a navalha de barba fechada envergonhada que sou
se abrir razoavelmente agressiva
e talvez nunca mais se fechar vamos lá ver
porque eu debaixo da gabardine
esta película literária própria para cumprimentar
e receber cumprimentos
eu estou de facto na pele e no osso
relativamente no tutano da esperança
apenas a carne mínima para as noites na cama
esse cordão umbilical que me prende à Revolta
e me exalta no Amor
Porque sei também
há quem espere a visita da liberdade
há quem não espere a visita da liberdade
há quem ponha a liberdade fora de casa
três espécies de gente que há-de ser julgada pela própria liberdade
todos pavões das artes e das letras arganazes do jornalismo
tartarugas da política
todos de escadote às costas
para falar de cima pelo funil do diálogo
ir de automóvel urinar ao litoral para ver o pôr-do-sol
todos os que usam o sexo como gravata
e amam de gravata no sexo todos definitivamente avestruzes
Não entro neste tango à meia-luz para não ver o sangue
sou pela patada no sobrado
pela cornada no tecto
sou pelo salto da pantera
e o ódio e o amor raiados de vermelho
Sou pela mão no martelo
e o martelo cntra o espelho!
Sou por ti pelo teu Olho Selvagem
pelo teu esquerdismo de Berro e de Chavelho!
Já o disse uma vez:
pelo meu relógio são horas de matar
de chamar o amor para a mesa dos sanguinários
Estou-me nas tintas
para a pesca à linha das ideias
para a fila de chapéus alentejanos
em coro desafinando a esperança
Sou talvez um violento
um homem com labaredas à roda da cintura
e a língua de fora apesar de ranger os dentes
Dany Anti-Suicidado
sei muito bem que também te chamas Rudi e Vietname e Che Guevara
e outros nomes mais
e um só nome: Proletariado
Estou farto de fazer tricot com as próprias tripas
de beber e de escrever nos intervalos
ter por destino fumar cigarros para divertir os pulmões
até que deles saiam serpentinas e pronto
e não é isto que quero
Dany Possesso
Anel Vermelho e Negro
Fogo no Abcesso

Peixe-Dada na Corrente Quente Surrealista

Até à vista!

ANTÓNIO JOSÉ FORTE

5.9.04

No zoo-ilógico e Animais, animenos

"NO ZOO-ILÓGICO

Zoo, ainda aceito. Mas lógico, porquê? As mais das vezes é mesmo ilógico: os animais com ordem de prisão, detidos sem outra legalidade que não seja a prepotência de nossa espécie. O senhor duvida? Então venha por outros olhos visitar o parque.
Desta feita, daremos volta à passarada. Dá pena ver tanta pena subusada. Contudo, os cantares de encanto, os pios e os rodopios, as súbitas colorações, todas essas maravilhas permanecem, resistindo à jaula. Mar, ave, ilhas.

Primeiro, as aves de rapina. Estes majestosos caçadores não merecem tão pejorativa nomeação. No domínio das aves muitas correcções se necessitam, como haveremos de ver.
Comecemos pelo falcão: já viram os olhos, como são felinos? Certo seria chamar-se de falgato.
Já o mocho tem os olhos como as lojas antes do PRE(*): estão abertas mas não atendem ninguém.

Haverá uma estória de amor, feita de eterno desencontro, entre a ave nadadora, o pinguim, e o peixe-voador.

O macho da catatua: o catateu. Entre guerreiro e palhaço a catatua se assustou com o temor que quer infligir aos outros.
O tucano emitiu o bico em triplicado. Não está pousado num galho mas sobre um cano. Pelo nome se vê que trata o cano por tu, o tucano.
É preciso ter perna para pernoitar. Quem diz é a garça em suas pernaltitudes.
Rectifico o albatroz: alba, sim; atroz, nunca.

O maior da família, a avestruz. É uma ave que não exerce. As asas, desempregadas, quase estão murchas. Alguma coisa deve ter acontecido para Deus lhe tirar o brevet.

De raspão quase o morcego se empassarava. No escuro-fusco, o mamífero aviador se orienta só de ouvido. Desgraça do morcego, então, era ser morsurdo.

Há hierarquia nos nomes. Pássaro não é sinónimo completo de ave. Pássaro é menos que ave, estatuto menor da carreira alada. Da mesma maneira, pluma e pena não são sinónimos gémeos. A pluma é a pena de gala, o traje de cerimónia.

O galo: mais cavalheiro não conheço. Cisca e debica mas quase não come. Oferece o melhor às galinhas do seu harém. Exemplo para os homens que, ao comerem as galinhas, não deixam parte valiosa para as mulheres.

A mais volátil de todas as feras: a atmosfera. Ela é como o coração de certas mulheres: todos nela residem, ninguém lá mora.

O leitão pequeno: o leitinho.

O marisco, primeiro foi mar. Só depois foi isco. Como a amêijoa, no balanço da onda, amenjoada.

O macho da gazela? O gazele. A fêmea do elefante: a elafante.
Ficando nos paquidermes: não será que, de tão enormíssimos, eles em vez de digestão, têm trigestão?

A mais bela cá na área? A canária? Nas artes do chilreio, a maior: a chilrainha. E que dizer da ave que pia e logo se arrepende? É a ave dos arrepios. E ainda de passarada, se diz dos compromissos: antes comprometido que com o peru metido.


E, no fim da volta, mais além, enjaulado, o pelicano. Como ele está magro: é só pele e cano!

A visita findou suas horas. A tabuleta, no fecho da estória, rezava: proibido retirar comida aos animais. Um outro letreiro, virado para o interior das jaulas avisava a bicharada: "não provoque os homens, sua humanização está em curso".
A cidade e o zoo-ilógico: qual deles aprisiona o outro? Ao menos, se isentem de pagamento os bichos quando entenderem visitar os homens em suas urbaníssimas gaiolas, os altos prédios que tanto arranham os céus.



ANIMAIS, ANIMENOS

Na solidão da jaula os bichos se autrofiam. Que desanimaldade! Assim, arrisco: o homem é o antecessor de todos os animais. Ofendo? Que outro ser, portador de alma, é tão sem-respeitoso? Amanhã, em suas fábulas, os bichos narrarão: no tempo em que os homens sujavam o mundo. Passemos aos animais, antes que esgotem:

O polvo, multipérnico, em sua imóvel impaciência. Tentaculista, dono de suas serpentes, quem sabe ele pressente o polvilho da morte, o polvo em transição para o guisado?

Já as lulas, em seus líquidos voos, lembram suas aéreas parentes, as libélulas.

Quem não simpatiza com as gazelas é o Lopes. Pensa que são contra ele, os antílopes.

A avestruz mete a cabeça no deserto. Vá lá ela. Porque homens há que escolhem bem pior: meter o deserto dentro da cabeça.

O piolho, saltitando de contente, esbarra na fivela do cinto do hospedeiro. Do choque vazou-se-lhe a vista. Sem um olho, o piolho já só assina: pi.
Já o outro, bem higiénico: o pirilimpo.

E agora com o SIDA? Coitado do vampiro, viciado nas refeições sanguíneas. Que poderá o pobre quiróptero fazer? Qual a sua quiropção? Pedir o teste do HIV às vítimas? O melhor será, talvez, retirar-se. Vampirar-se.

Avultado nome leva o esquilo que, somado, não chega nem a um quarto de quilo. Recertificado seja seu título: fique o esgrama.
Ao inverso, o hipopótamo. Acertado seria: o hiperpótamo.

A rã que faz cópias? A rã que xerox!

Restem dúvidas, a cor do azul é a água. A um instante, me desvio, submarinheiro. Descubro as algas, álgicas, nostálgicas em seus líquidos canteiros. Regam-se de terra, adubam-se de luz. Suas verdes guelras, os raminhos onde assobiam as ondanias.

O cágado, na caixa de si, tartaenrugado. Corcundarilho, marcha a remo. O cágado é o único que morre já em construído mausoléu."


(*) PRE: Programa de Reabilitação Económica lançado pelo governo moçambicano em meados da década de 80.

Mia Couto - "Cronicando"; 5ª ed. Lisboa, Caminho, 2000, p. 125-130

única certeza


A única certeza da pessoa é saber que vai morrer.
Escrevo isto lembrando uma triste notícia que ontem recebi. No meio da valsa dos copos não matutei muito no assunto, apesar da óbvia consternação... até que hoje...
Morreu alguém que não conheço. Ou conheço de vista, não interessa. Frequentava um mesmo local que eu, a horas diferentes. Pouco mais nova. Na flor da idade.
Porque se morre aos 19 anos num estúpido acidente de viação? Poderá existir alguma razão que eu deva saber?
Isto vem-me lembrar que apesar de se dever pensar no futuro, a vida deve ser vivida momento a momento. Não gosto do efémero, porém o latino tinha razão. Carpe Diem.
O estertor final é certo, o que não é certo é que venha tão cedo.

Que descanses em paz, Catarina.

4.9.04

mil palavras

Qual será a verdade desta imagem?

3.9.04

Dépression au-dessus du jardin

Serge Gainsbourg. Sintetizador. Mensagem. Excelente lírica. Não resisto a fazer dela um post. Para fazer o download gratuito da música, clicar no título deste post...

Sylvia Petrie - Autumn Garden

"Dépression au-dessus du jardin
Ton expression est au chagrin
Tu as lâché ma main
Comme si de rien
N'était de l'été c'est la fin
Les fleurs ont perdu leurs parfums
Qu'emporte un à un
Le temps assassin

Dépression au-dessus du jardin
J'ai l'impression que c'est la fin
Je te sens soudain
Tellement lointain
Tu t'es égaré en chemin
Tu essayes de me faire croire en vain
Que l'amour revien-
Dra l'été prochain"

Serge Gainsbourg

E uma vez que compreendo que o francês não tem a relevância que deveria ter no nosso sistema de ensino, publico aqui, pela primeira vez, uma tradução feita por mim, para os leitores fantasma que não dominem a língua:

"Depressão sobre o jardim
A tua expressão magoada
Prendeu a minha mão
Como se nada
Restasse do Verão, é o fim
As flores perderam os seus aromas
Importantes um por um
Tempo assassino

Depressão sobre o jardim
Tenho a impressão que é o fim
Sinto-te de repente
Muito distante
Perdes-te no caminho
Tentas fazer-me crer em vão
Que o amor voltará
Talvez no próximo Verão"

Serge Gainsbourg

Traduzido para português por Leonel Gonçalves

Tentei que a tradução fosse o mais fiel possível às ideias presentes no poema, tendo-se perdido as características da rima. Penso que o meu leitor fantasma ficará, no entanto, mais satisfeito por assim ser...

Chuva numa noite de Verão

Mais uma noite de chuva neste Verão. Não me queixo. Gosto de chuva e, para mais, de noite. Trovões e relâmpagos acompanham esta bátega de água que se abate sobre o estoro da minha janela. No entanto, estou confortável na minha cadeira. No meu quarto. Sei que tenho a cama a meu lado e que esta me ampara quando entro em sono descontrolado.
Gosto da chuva, gosto do Verão, gosto da noite. Gosto do silêncio e do som da água que cai. Noutra altura, far-me-ia melancólico. Hoje, apenas me faz pensar no sentido da coisa. Que sentido pode ter a vida de um perdido se a própria natureza, ordem superior das coisas, parece agir sem sentido? Tenho desculpa!

PS: a chuva é como a pessoa, é boa quando não é ácida...

2.9.04

Poema de sete faces

"Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus,
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo."

Carlos Drummond de Andrade

1.9.04

Engano

"Finges amizade que não tens e escrúpulos que nunca tiveste.
Ternura tanta, cuidados exagerados, beijos de mel, molhados na hipocrisia do disfarce. Talvez gratidão pela inocência. Talvez a apagar com beijos e sorrisos desleais a própria renúncia.
Um fogo desviado e agressivo sobre o macio pano de veludo.
Fazendo festa à ignorância, o homem passa seguro do terreno que pisa. Às vezes... inexplicavelmente, o terreno cria cardos, a flor preciosa torna-se intocável na firmeza da sua qualidade. Então - só o vento a beija, queima-a o Sol e a noite envelhece-a."

Celeste Cruz - "Liberdade Escrava" - Atlântida, 1961