Papa Léguas

"Tudo o que se refere ao homem é dotado de contingência"... Vidal de La Blache (geógrafo)

31.8.04

O Velho, o Rapaz e o Burro

Nubar Alexanian - "Burro"

"O Mundo ralha de tudo,
Tenha ou não tenha razão,
Quero contar uma história
Em prova desta asserção.

Partia um velho campónio
Do seu monte ao povoado,
Levava um neto que tinha
No seu burrinho montado:

Encontra uns homens que dizem:
"Olha aquela que tal é!
Montado o rapaz que é forte,
E o velho trôpego a pé."

"Tapemos a boca ao mundo",
O velho disse: "Rapaz,
Desde do burro, qu'eu monto,
E vem caminhando atrás."

Monta-se, mas dizer ouve:
"Que patetice tão rata!
O tamanhão de burrinho,
E o pobre pequeno à pata."

"Eu me apeio", dis prudente
O velho de boa-fé,
"Vá o burro sem carrego,
E vamos ambos a pé."

Apeiam-se, e outros lhe dizem:
"Toleirões, calcando lama!
De que lhes serve o burrinho?
Dormem com ele na cama?"

"Rapaz", diz o bom do velho,
"Se de irmos a pé murmuram,
Ambos no burro montemos,
A ver se inda nos censuram".

Montam, mas ouvem de um lado:
"Apeiem-se, almas de breu,
Querem matar o burrinho?
Aposto que não é seu."

"Vamos ao chão", diz o velho,
Já não sei qu'ei-de fazer!
O mundo está de tal sorte,
Que se não pode entender.

É mau se monto no burro,
Se o rapaz monta, mau é,
Se ambos montamos, é mau,
E é mau se vamos a pé:

De tudo me têm ralhado,
Agora que mais me resta?
Peguemos no burro às costas,
Façamos inda mais esta."

Pegam no burro: o bom velho
Pelas mãos o ergue do chão,
Pega-lhe o rapaz nas pernas,
E assim caminhando vão.

"Olhem dois loucos varridos!",
Ouvem com grande sussuro,
"Fazendo mundo às avessas,
Tornados burros do burro!"

O velho então pára e exclama:
"Do qu'observo me confundo!
Por mais qu'a gente se mate
Nunca tapa a boca ao mundo.

Rapaz, vamos como dantes,
Sirvam-nos estas lições;
É mais que tolo quem dá
Ao mundo satisfações."

Curvo Semedo

30.8.04

Lendo... Hemingway

"(...)Maria era encantadora.
Olha para ela, disse-se. Contempla-a.
E vi-a caminhar alegremente ao sol, com a camisa de caqui desabotoada no pescoço. Caminha como um potro, pensou Jordan. Nunca encontrei ninguém assim. Estas coisas não acontecem na realidade. Mas talvez esteja a sonhar ou talvez me deixe arrastar pela imaginação, pensava ele, e nada tenha acontecido. Lembrava-se de se ter encontrado, em sonhos, na cama, acompanhado de actrizes de cinema que lhe prodigalizavam carícias. Tinha-as possuído a todas e lembrava-se ainda de Garbo e Harlow. Sim, Harlow, tive-a muitas vezes. Talvez ainda sonhasse.
Jordan ainda se lembrava da noite em que Greta Garbo veio para a sua cama, na noite que antecedera o ataque a Pozoblanco; trazia uma macia camisola tecida com uma lã doce e sedosa. Quando ele a abraçava e ela se inclinava, sentia os cabelos a acariciarem-lhe o rosto. E ela perguntou-lhe porque não confessara que a amava, a ela que o amava há tanto tempo. E ela não parecia nem tímida, nem distante, nem reservada. Era a Garbo dos dias de John Gilbert, boa e meiga e era estranho tê-la abraçada contra ele. Era tão verdadeiro como se tivesse acontecido, e amou-a mais que à Harlow embora fosse só uma vez enquanto a Harlow... e talvez o presente não passasse também de um sonho.
Mas talvez não seja, repetiu-se. Talvez Maria seja realidade e possa estender a mão e tocá-la. Ousarias fazê-lo? Perguntou-se. Talvez te desses conta de que nunca aconteceu nada e de que tudo é produto da tua imaginação, como os teus sonhos onde as actrizes de cinema, amigas velhas, vinham deitar-se no teu saco de campanha, por terra, na palha das eiras, nos estábulos, nos corrales e cortijos , nos bosques, nas garagens, nos camiões e em todas as montanhas de Espanha. Vinham todas meter-se no saco de campanha durante o seu sono e todas eram mais gentis do que poderiam ser na realidade. Talvez tenhas medo de tocar em Maria e verificar que é realidade, repetia-se ele. Mas sim, tu tens medo: sonho, imaginação, irrealidade.
Jordan adiantou-se e pousou a mão no braço da rapariga. Sentiu sob os dedos a macieza da carne debaixo do pano da blusa. Maria encarou-o e sorriu.
(...)"

Ernest Hemingway, "Por quem os sinos dobram", Edição Livros do Brasil, pág. 135.

Post 13: Manuscrito de Florbela Espanca

Desconhecia este serviço da Biblioteca Nacional. Soberbo. Alguns escritores nacionais têm lá a sua obra manuscrita digitalizada. Felizmente, Florbela Espanca encontra-se no lote dos escolhidos, podendo-se aceder através do link acima colocado.

Manuscritos de Florbela Espanca - "Crisantemos" e "Que diferença"


ao acordar...

M. L. Cochofel - "Equinócio"

29.8.04

Esta vida é uma viagem

"Esta vida é uma viagem
Pena eu estar
Só de passagem

A noite - enorme
Tudo dorme
Menos teu nome

Que tudo se foda,
Disse ela,
E se fodeu toda

De colchão em colchão
Chego à conclusão
Meu lar é no chão

Saber é pouco
Como é que a água do mar
Entra dentro do coco?

Quando penso
Em partir em viagem,
O fim da primavera.

Amar é um elo
Entre o azul
E o amarelo

Um salto de sapo
Jamais abolirá
O velho poço

Morreu o periquito,
A gaiola vazia
Esconde um grito

Hoje à noite
Até as estrelas
Cheiram a flor de laranjeira

Duas folhas na sandália
O outono
Também quer andar

Pra que cara feia?
Na vida,
Ninguém paga meia."

Paulo Leminski

citação

"Eu tenho idéias e razões,
Conheço a cor dos argumentos
E nunca chego aos corações."

Fernando Pessoa, 1932

Tarde domingueira, sol e brisa...

Uma tarde agradável. Varrido por uma onda de nostalgia, assalto os meus cd's e mp3 mais antigos e descubro uma música que me marcou pela sua simplicidade e leveza de espírito que proporciona. Ottis Redding escreveu esta letra a pensar numa tarde domingueira, só pode...
Provavelmente, vou meter-me no Datsun e dirigir-me ao Cabo Mondego, ponho a cassete a rolar e fico ali, indefinidamente, a olhar o mar, a escutar o som das gaivotas, a ver as pessoas na praia, quais formigas em carreiro desde Buarcos até à Figueira. Na certa, irei ver um barco a sair da baía em direcção ao mar alto. As ondas que vêm mas não voltam após se espraiar na indiferença da terra já húmida de 5.000.000.000.000.000.000.000 de ondas que repetidamente fizeram o mesmo. Efémeras. Não as suporto. O resto vem na letra. É como me sinto hoje.

Kozin - Blue sea & yacht

NOTA aos meus leitores-fantasma: esta música foi gravada 7 de Dezembro de 1967, apenas três dias antes da trágica morte de Redding, numa queda de avião no Wiscountin. Para quem não conhece, Ottis Redding é o dono da versão de Satisfaction (dos Rolling Stones) mais conhecida pelo público - a alma do soul e da blues afro-americanos ao serviço de uma bela canção rock. Conheço ainda versões da "Dock of the Bay" feitas por Pearl Jam, Neil Young e Dave Mathews. Sem dúvida, a ouvir e a ler. A-ver-o-mar.

"Sittin' on the dock of the bay

Sittin' in the mornin' sun
I'll be sittin' when the evenin' come
Watching the ships roll in
And then I watch 'em roll away again, yeah

I'm sittin' on the dock of the bay
Watching the tide roll away
Ooo, I'm just sittin' on the dock of the bay
Wastin' time

I left my home in Georgia
Headed for the 'Frisco bay
'Cause I've had nothing to live for
And look like nothin's gonna come my way

So I'm just gonna sit on the dock of the bay
Watching the tide roll away
Ooo, I'm sittin' on the dock of the bay
Wastin' time

Look like nothing's gonna change
Everything still remains the same
I can't do what ten people tell me to do
So I guess I'll remain the same, yes

Sittin' here resting my bones
And this loneliness won't leave me alone
It's two thousand miles I roamed
Just to make this dock my home

Now, I'm just gonna sit at the dock of the bay
Watching the tide roll away
Oooo-wee, sittin' on the dock of the bay
Wastin' time"

Ottis Redding

Governo. Legitimidade. Women on Waves.

É estranho pensar que o mesmo governo que entrou a meio de uma legislatura, sem ter sido eleito e, portanto, legitimado pelo povo, venha agora mobilizar todos os meios ao seu alcance para o combate a uma visita LEGÍTIMA do barco da Women on Waves.
E, mesmo que assim não fosse, questões formais foram levantadas na altura da saída de Durão Barroso para Bruxelas. Foram elas que sustentaram a maioria na sua continuação no poder. São as mesmas que agora os defensores da vinda do "barco do aborto" podem levantar. Legalmente, o barco só pode ser impedido de se fazer a águas nacionais em caso de risco para a segurança pública e a soberania nacional. Nenhuma destas situações ocorre. Questões de saúde pública??? Por favor, a epidemia existe em Portugal e chama-se ABORTO CLANDESTINO. Admito que os governates, as suas filhas e esposas não o saibam - a ida a Badajoz é barata tendo em consideração os seus níveis de rendimentos.
Resta-lhes o argumento moral, mas esse não tem valor de lei. O terrorista Bush Júnior esteve na Base das Lajes e foi recebido pelo fantoche Durão. Na altura não ouvi falar do perigo para a segurança pública, soberania nacional e saúde pública que essa estadia provocou. Os níveis de iliteracia técnica ultrapassaram, nesse dia, os 50 % a nível nacional com apresença desse tratante.
Não sou defensor do aborto, mas do direito de escolha da mulher. Aliás, se quem é contra a liberalização fosse consciente, apostava, enquanto é governo, no incremento do planeamento familiar, educação sexual da população e incremento de prestações sociais dignas desse nome como forma de evitar o aborto. No entanto, nem isto se vê...
Portas e Santanete, vocês vão criar um incidente diplomático com a Holanda devido à radicalidade cega das vossas ideias morais que vos deturpam uma visão clara da realidade e vos levam a cometer actos de ilegalidade internacional. Não brinquem com a dignidade da Mulher. Informem-na, cuidem dela.

Só mas... acompanhado?! ou vice-versa.

Será possível que alguém em seu perfeito juízo se possa sentir só... acompanhado? Assim me parece. Hoje, rodeado de "amigos", "colegas", senti-me completamente só... o que nem é surpresa. Acontece tanto quanto saio, isto é, todos os dias, diga-se, noites!
"O próximo copo. "A próxima gaja". A póroxima curte" - ouço insistentemente. Alguém pensa em VIVER? Viver não é "ir vivendo", é procurar algo mais, é ir mais além! Procurar algo perene, que se fixe nos nossos corações quais lapas em rocha marinha... Não há só que aproveitar o momento efémero, mas sim a semente que dele pode ficar. Ou não?
Merda, a bebida faz poetas!

Sybe I. Rispens - Melancholie

28.8.04

Sinto-me Nick. Cave ou Drake, "who cares"...

Sinto-me Nick. Nome amaldiçoado. Cave e Drake são artistas de renome, porém, um não se realiza no amor (Cave - onde estás, PJ?), o outro é famoso sem alguma vez ter tido o prazer de disfrutar de uma grande carreira - Drake morreu antes disso - morreu aos 27. Faltam-me 5, nem para isso sirvo. À maneira de cada qual são falhados. Inspiram-me, é compulsivo...
Não o posso evitar. Também o sou. Tento compreender-me, não consigo - e se eu não consigo, quem o conseguirá? Ou tentará?
Bem, penso que a cerveja em demasia me toma já conta do espírito, o melhor é terminar este post antes que me assalte alguma barbaridade. Deixo-vos, porém, meus leitores-fantasma, estas duas preciosidades provindas de dois dos mais profícuos artistas de todos os tempos. Já que se falha, que se falhe com emoção...


"WE CAME ALONG THIS ROAD

I left by the back door
With my wife's lover's smoking gun
I don't know what I was hoping for
I hit the road at a run
I was your lover
I was your man
There never was no other
I was your friend
Till we came along this road
Till we came along this road
Till we came along this road

I ain't sent you no letters, Ma
But I'm looking quite a trip
The world spinning beneath me, Ma
Guns blazing at my hip
You were my lover
You were my friend
There never was no other
On whom I could depend
Then we came along this road
We came along this road
We came along this road"

Nick Cave - No more shall we part

Kertesz - "Melancholic"

"SATURDAY SUN

Saturday sun came early one morning
In a sky so clear and blue
Saturday sun came without warning
So no-one knew what to do.
Saturday sun brought people and faces
That didn't seem much in their day
But when I remember those people and places
They were really too good in their way.
In their way
In their way
Saturday sun won't come and see me today.

Think about stories with reason and rhyme
Circling through your brain.
And think about people in their season and time
Returning again and again
And again
And again
And Saturday's sun has turned to Sunday's rain.

So Sunday sat in the Saturday sun
And wept for a day gone by."

Nick Drake - Five Leaves Left

triste


"Owen", de Frances MacNaer

"Quem és tu?" não sei...

"Nasci na Terra e nela me consumo. Fazem-me a cama de penas que o vento lança ao ar. A traição começa no leito que moído se rasga em tiras na palha podre.
Respiro o que o ar puro traz nas essências desencontradas, na fuga da aragem.
Olho o espaço , gosto de voar: lá longe, as nuvens são mais brancas. Olhando do alto, vejo a Terra, onde o amor brinca no lago dos sonhos, da mentira e do desejo, numa mistura enraizada de vaidade altaneira, mostrando na ramagem delicada o seu precioso fruto, por vezes apodrecido...
Uns pontos correm velozmente. O que é aquilo?
Um grão de areia perdido: Sou eu que lá vou...
Sou um pedaço de cada, desde o pecador ao virtuoso, desde o ignorante ao sábio. Quem?!...
Sou eu. Eu sou aquele, e como aquele és tu. - Somos a ilusão que pessoalmente criamos e atraiçoamos, e enchendo o mundo nos perdemos nele."

Celeste Cruz

Esta senhora nasceu em Meãs do Campo (concelho de Montemor-o-Velho) mas por casamento mudou-se para Coimbra. Não recebeu instrução de elevado nível, aprendeu com a vida. Esta, dedicou-a ao outro, à filantropia da ajuda ao necessitado, à compreensão, não dando tanta importância ao algodão do próprio umbigo quanto ao algodão que poderia fazer falta a um seu semelhante para se cobrir do frio coimbrão.

24.8.04